Orientação de carreiras e psicoterapia: o lugar do trabalho na existência humana

Orientação de carreiras e psicoterapia: o lugar do trabalho na existência humana

A vida humana é complexa em suas teias, em suas linhas que se movimentam, se tocam, se repelem e se convergem. A vida humana é um emaranhado de fazeres e saberes e possibilidades que extrapolam uma única definição. Podemos ser e somos sujeitos múltiplos, com facetas, que coexistem harmoniosamente – ou não – dentro de um único. 

Assim, por muitas vezes, recebo no consultório pessoas que me procuram para o processo de orientação de carreiras, coaching, em função de sofrimentos de diversas naturezas relacionados ao trabalho. Entre elas, posso destacar demandas como: excesso de cobrança por produtividade, falta de sentido no trabalho, assédio moral e sexual, longas jornadas laborais – que dificultam o equilíbrio entre demandas da vida pessoal e da vida profissional – e esgotamento emocional. 

Todas as queixas são legítimas e validadas durante o encontro. Mas, diante da escuta ativa, que é capaz de alcançar os sentidos vivenciados daquilo que é dito, percebo que as questões relativas ao trabalho, colocadas ali, estão, em sua essência, sediadas em outras instâncias do ser e noto que há a necessidade, primordial, de uma compreensão mais ampla do lugar do trabalho na existência. 

Então, trago para este artigo a reflexão que me salta sobre como, muitas vezes, a demanda que chega em busca do coaching  pode estar muito mais relacionada à psicoterapia, ao olhar para si, para dentro, para as experiências e trajetórias enquanto pessoa, do que a um processo de coaching em si.

Te convido a ler e a pensar, junto comigo, sobre os possíveis vieses que levam à busca de um processo quando, na verdade, existe a necessidade de outro espaço primeiro. Vamos lá?

A busca pelo processo de coaching e o padrão de masculinidade 

Bem, para começar, uma primeira reflexão que surge é a partir da constatação de que a maioria dos clientes, que chegam em busca do processo de coaching, com as demandas que colocam em cheque a questão profissional, é composta de pessoas do sexo masculino.  

E aqui proponho uma relação entre a procura pelo coaching e padrão de masculinidade que impera dentro do modelo do patriarcado. Sim, pois devemos pensar o indivíduo inserido, moldado e construído, dentro de uma sociedade, de um contexto, para tentar compreender – e rever – a atuação no mundo. 

O padrão de masculinidade estipula um tipo de comportamento do que se define esperado para todos aqueles  do sexo masculino. Por outro lado, os padrões de gênero também estabelecem os comportamentos esperados  quando se trata das mulheres Nos dois casos, as narrativas elaboradas tentam colocar os seres humanos em caixinhas, determinando desde o modo de se vestir, onde e como trabalhar e até mesmo como estamos autorizados a nos sentir em diferentes situações . 

Historicamente , o papel de provedor foi socialmente construído e atribuído aos homens, depositando  neles a responsabilidade de sair de casa, produzir com sua força de trabalho, trazer o alimento para o lar e, assim, garantir a subsistência da família. Os homens foram ensinados a serem fortes, corajosos e a nunca, em hipótese alguma, entrarem em contato com sua  fragilidade ou vulnerabilidade, dificultando até mesmo o reconhecimento destes sentimentos. 

No modelo até então conhecido, não há espaço para a singularidade, que inclui, dentre outros , angústias,  medos e demais tonalidades afetivas. Refletir a respeito das diferentes possibilidades que cabem na vivência de  ser homem é um movimento importante, que, em minha prática, observo acontecendo, ainda que de maneira tímida e a passos lentos, mas fundamental para repensarmos a construção social da masculinidade. 

“O  herói  é  o verdadeiro  sujeito  da  modernidade.  Isso  significa  que,  para  viver  a  modernidade,  é preciso uma natureza heróica”. Walter Benjamin.

Assim, diante desse impasse e desse receio de se mostrar frágil, sensível às emoções, às confusões, às incertezas e aos sentimentos, que são intrínsecos à espécie humana, os homens buscam, primeiro, o processo de coaching que pode parecer um caminho de menos exposição pessoal para falar de suas angústias. 

É como se houvesse um aval, um acordo pré-formado da sociedade, que permitisse ao homem buscar auxílio para seus dilemas profissionais, mas que, em contrapartida, o impedisse de procurar recursos para lidar com as questões que tocam o ser em si. 

O autocuidado como fraqueza

Um outro aspecto que trago para nossa discussão e que está, evidentemente, ligado ao discorrido acima, é a visão do autocuidado como sinônimo de fraqueza e de incapacidade de lidar com os próprios sentimentos. 

Vivemos a era da instantaneidade, da produção a qualquer custo e a qualquer hora, do sucesso que precisa ser alcançado, dos números que precisam crescer mais e mais e da conquista de um status, de uma posição, para se ser alguém. 

Toda essa demanda de urgências reflete em sofrimento, em ausência de tempo e espaço para sentir e para viver, simplesmente. Vivemos tempos de atropelos, e o ser humano vai minguando enquanto seu trabalho vai rendendo. Há um excesso de positividade nos tempos atuais que sufoca a possibilidade da existência e todas as suas nuances.

O filósofo e ensaísta sul-coreano, Byung-Chul Han, nos fala da sociedade do desempenho, aquela que vivemos hoje e que estabelece modos de vida expressos pelo excesso ou tirania da positividade. Como consequência, produz sujeitos sempre em busca da superação em relação aos seus ganhos e que possuem subjetividades e sociabilidades orientadas pelo desempenho de multitarefas e do constante ato de produzir

Então, escolher parar, reduzir o ritmo, rever o estilo de vida e olhar para dentro, para o que atormenta, incomoda, para o que o deixa insatisfeito, aflito e angustiado, na sociedade de hoje, é considerado perda de tempo, é a escassez da produção. 

Diante dessa lógica – ilógica – a busca por autocuidado em um processo de psicoterapia, por exemplo, pode ser vista como sinal de estagnação, de fraqueza e vulnerabilidade. Por outro lado, iniciar um processo de coaching pode ser justificado no campo do trabalho, no desejo de um desenvolvimento profissional, de mais produtividade e melhor performance. A justificativa parece mais plausível diante do modelo de masculinidade estabelecido.

O sociólogo francês, Alain Ehrenberg, em seu livro “O culto da performance”, debruça sobre as  transformações  no  mundo  do trabalho  do  século  XXI e trata sobre os discursos  utilizados por gestores que colocam o esporte como figura simbólica para o rompimento de barreiras psicológicas e sociais no mundo do trabalho.

O discurso proferido traz a falácia de que o trabalhador e a trabalhadora devem  agir  cotidianamente como heróis  esportistas para  baterem as suas metas,  seus  objetivos, e  sucessivamente, ‘vencer as batalhas’. 

O encontro consigo como ponto de partida 

Independente do processo iniciado ser de coaching ou de psicoterapia, é imprescindível a criação de um espaço de escuta que possibilite o desvelamento do tecido de sentimentos que se escondem por trás dos discursos normativos. Tais discursos, junto com expectativas sociais e os diferentes papéis que desempenhamos, frequentemente, nos levam a construir uma compreensão inautêntica de nós mesmos. Inautêntica, pois ela contém mais elementos provenientes de fora que aqueles que são fruto de um aprofundamento em si mesmo.

“A profundidade de um processo psicológico, na verdade, depende muito mais da disposição interior do sujeito na relação com o profissional, do que de uma definição prévia externa.”

Mauro Amatuzzi

No contexto da clínica, acredito que a desconstrução dos estereótipos dar-se-á por um conjunto de critérios. O primeiro deles está na afirmação acima. Apenas com a disposição e abertura da própria pessoa que procura o psicólogo será possível iniciar o processo de aprofundamento em sua própria história pessoal e nos sentidos que ela abriga. 

Contudo, a disposição mencionada acima diz respeito ao próprio cliente da psicoterapia ou do coaching. E quanto ao profissional? O que ele precisa proporcionar ao cliente para que esta jornada seja possível? Gosto muito de uma releitura que faz Mauro Amatuzzi (2012) do tripé da psicoterapia proposto por Carl Rogers.

Em primeiro lugar, é necessário o acolhimento. Apenas em um ambiente livre de julgamentos ou expectativas a pessoa poderá sentir-se à vontade para falar livremente sobre si mesma. Em segundo lugar, temos a importância da compreensão, pois para a compreensão dos sentidos, devemos ir além do entendimento daquilo que foi dito de fato. É necessário recuperar as intenções e sentimentos relacionados a cada fala.

Cada fala pode ser representada por um fio de sentido que se encontra com outros fios provenientes da vida da pessoa, formando um tecido de sentidos. Esta compreensão refere-se a inserir os sentimentos e pensamentos nesta complexidade de sentidos. Em terceiro lugar, busca-se provocar a reflexão por meio de colocações que facilitem este olhar para si mesmo, bem como a compreensão dos sentidos aqui mencionada.

E onde fica a diferença da prática do coaching e a da psicoterapia? No tipo de demanda trazida pela pessoa. Quanto mais esta demanda estiver relacionada a sentimentos e a passagens da história de vida da pessoa que ainda provocam incômodo ou não estão suficientemente compreendidas, mais esta demanda se aproxima da psicoterapia.

Quanto mais a demanda estiver relacionada a objetivos práticos e materiais, nos quais a necessidade de compreensão de si cumpre um papel apenas complementar, mais nos aproximamos de um processo de coaching.

Vale lembrar que dentro desta proposta de escuta, a própria definição da modalidade de trabalho é uma construção a ser feita a partir do diálogo entre a pessoa e o profissional. 

Por fim, em ambas as práticas, é preciso que haja uma abordagem longe de amarras e desenraizada dos padrões estruturais da sociedade, capaz de olhar e acolher as questões humanas em sua totalidade. É preciso também que, tanto na psicoterapia como no coaching, haja entrega, espaço e escuta por parte de cliente e psicólogo. Assim, teremos a possibilidade de sermos sujeitos autênticos em liberdade e consciência. 

Fontes:

AMATUZZI, Mauro. Rogers: ética humanista e psicoterapia. Campinas-SP: Editora Alínea, 2012.

Periódicos UNESP

Sociedade do Cansaço – Scielo

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