Márcio Souza
Durante toda minha vida, mesmo na infância, estive cercado por pessoas que eram frustradas em suas carreiras. Sem dúvida, este foi um dos fatores que me fez escolher a Psicologia como profissão e, em especial, a área de orientação profissional e de carreiras. Fenômenos relacionados a carreiras nunca passaram despercebidos de mim. Por que profissionais muito capazes em suas áreas não conseguiam um bom posicionamento profissional? Por que, nem sempre, os melhores alunos de uma turma são os que obtêm maior destaque em suas profissões?
Diversas vezes me questionei: Quais os fatores que levam alguns à realização na profissão e outros a viverem relações tão conturbadas com suas profissões? Por que eu mesmo vivi estas dificuldades de forma mais branda que clientes e colegas? E foi tentando responder a esta última pergunta que eu tive alguns insights relevantes. O primeiro deles foi o papel dos diferentes mentores que tive ao longo de toda minha vida.
Renato Ricci define mentoria como “o processo onde alguém, geralmente mais experiente, auxilia e apoia alguém mais novato. A figura do mentor espelha o papel daquele que leva outra pessoa a um novo patamar de conhecimentos ou experiências”.
No sentido usado por Ricci, percebi que nunca deixei de ter mentores em minha vida. O primeiro que consigo lembrar foi o meu avô paterno “Seu Guima”, que nunca deixou de acreditar em meu potencial e em meus momentos de dificuldade na escola sempre me recebia com um abraço acolhedor e conselhos que me acompanham até hoje. Ainda hoje lembro de seu orgulho quando enviei uma cópia do certificado de minha primeira apresentação em um congresso científico. Ainda no ensino médio, pude contar também com alguns pais de amigos que sempre alertavam para critérios importantes ao fazer uma boa escolha profissional.
Na universidade, tive a sorte de ingressar em uma instituição em que a formação, e não apenas o ensino, era uma preocupação muito grande entre o corpo docente. Muitos dos meus professores desta época se tornaram amigos e, certamente, alguns cumpriram o papel de mentores. Eram verdadeiros mestres que, em geral, fora da sala de aula, me ajudavam debatendo comigo a respeito dos temas de suas disciplinas, discutindo sobre o mercado de trabalho da psicologia e, não raro, com um ombro para acolher minhas mágoas ou minhas ansiedades diante da formação.
Posso dizer que durante o período da faculdade tive muitos mentores mas uma delas ocupou um lugar muito especial. Seu nome é Glória. Meu primeiro contato com ela foi quando eu era representante acadêmico em um dos departamentos do curso de psicologia. Só fui ser seu aluno no terceiro ano e foi aí que nos aproximamos. Sempre com um jeito doce, ela conseguia me estimular para ir sempre um pouco além. Lembro ainda hoje quando ela me pediu para refazer um trabalho, pois sabia que eu não tinha dado o meu melhor.
Muitos dos meus alunos não entenderiam se eu fizesse um pedido desses, mas eu entendi. Para ela, não bastava que eu conseguisse a nota, ela estava preocupada com o profissional que crescia em mim. Refiz o trabalho e não lembro que nota tirei. Foi também ela quem me apresentou ao mundo da orientação profissional e, quando eu questionei os textos que ela havia recomendado, me emprestou uma dezena de livros em espanhol (junto com um dicionário). Um destes autores cubanos se tornou a base teórica do meu mestrado. Tenho muitas outras histórias com a Glória que não cabem aqui. Ainda hoje somos amigos e não foi à toa que a convidei para ser minha madrinha de casamento.
Estes professores/mentores tiveram um papel fundamental, pois tinham a exigência necessária para que eu me desenvolvesse como profissional e a sensibilidade de reconhecer a hora de acolher o estudante. Foram eles que primeiro perceberam minha afinidade com a pesquisa e com o ensino e me incentivaram a perseguir um mestrado logo ao término da minha graduação. Ainda antes de finalizar o mestrado me tornei professor universitário e agora era a minha vez de ajudar os aspirantes a psicólogos a encontrar seus próprios caminhos. Não foi nada fácil, mas admirador do pensamento de Paulo Freire, deixei que os próprios estudantes me mostrassem como ajudá-los.
Como professor universitário, ao longo de quase 20 anos, tive a oportunidade de orientar um grande número de alunos que, simplesmente não acreditavam em sua capacidade, ou acreditavam que deveriam trancar o curso por não serem bons o suficiente. Lembro com muito carinho de inúmeras conversas nos bancos das faculdades em que eu tentava lançar uma luz nestas perspectivas tão sombrias de futuro. Felizmente muitos destes ex-alunos hoje são profissionais formados e pós-graduados e em quem eu confio plenamente como profissionais.
Além de minha trajetória como professor, também tenho aproximadamente 20 anos de experiência em orientação de carreiras. Também este ofício me permitiu refletir bastante sobre a relação entre a satisfação e a insatisfação profissional. Geralmente quem me procura como orientador tem alguma insatisfação com sua carreira. Em geral tais insatisfações estão relacionadas a critérios de escolhas que pareciam pragmáticos na época em que as escolhas foram feitas, mas deixaram de considerar o contexto como um todo ou quais as perspectivas de futuro estes critérios abririam.
No contexto de orientação de carreira, é muito comum que critérios de escolha equivocados sejam a principal fonte de insatisfação com a vida profissional. Geralmente estes critérios são escolhidos pela pessoa sozinha, ou até mesmo com a ajuda de alguma figura de confiança que não reunia o conhecimento necessário para orientá-la adequadamente. Infelizmente esta fonte de erro é muito comum, pois frequentemente estes “conselheiros” são pessoas que possuem boa vontade e alguma experiência na área de atuação mas acabam universalizando sua experiência na hora de aconselhar os mais jovens.
Nas Palavras de Achor, “Se você começar a observar pessoas ao seu redor, perceberá que a maioria segue uma fórmula que sutilmente ensinada nas escolas, pelos pais ou pela sociedade. Ou seja: se você se empenhar, terá sucesso e só depois de ter sucesso é que poderá ser feliz”. O grande problema deste tipo de crença é que a maior parte das pessoas passa a vida vivenciando um sofrimento relacionado ao trabalho na esperança de que, um dia, sintam-se felizes.
Sendo existencialista, estou mais propenso a acreditar que é a partir de nossas escolhas que são criadas as condições de possibilidade daquilo que entendemos como felicidade. Claro que nossas escolhas são feitas dentro do contexto em que nossa vida se encontra e seria leviano dizer que fatores sociais, culturais e econômicos não pesam sobre as nossas escolhas. Não apenas pesam, muitas vezes as determinam, basta ver o impacto que a pandemia do COVID-19 teve em nossas vidas.
É por isso que Sartre alerta que nossa liberdade é sempre situada, ou seja, dentro do contexto social, econômico e político em que estamos inseridos, somos obrigados a escolher e sempre seremos responsáveis por estas escolhas. Sartre chama a tentativa de negar esta responsabilidade de má-fé, pois ao invés de nos isentar da responsabilidade, esta postura só nos coloca em uma condição de alienação que tende a intensificar nosso sofrimento.
Portanto, não adianta desejar algo, fazer escolhas que nos afastem daquilo que desejamos e esperar que nossos sonhos se realizem. Para que os sonham tenham a possibilidade de serem realizados, precisamos buscar a coerência entre aquilo que desejamos e as escolhas que fazemos. É exatamente aí que se encontra o problema. A maioria das pessoas simplesmente não tem como contar com mentores experientes e habilitados para orientá-las em sua rede de relacionamentos. É justamente por isso que grandes empresas adotam esta metodologia para que seus profissionais mais experientes ajudem a orientar os menos experientes.
Unindo as minhas experiências como orientador de carreiras e como professor universitário, passei a me questionar por que os cursos de psicologia não possuíam um serviço para ajudar os jovens psicólogos a planejar suas carreiras e já começar a pensar em suas trajetórias profissionais. Foi com um certo choque que percebi que a vivência que tive na universidade, com professores/mentores sempre à minha disposição não é a realidade de praticamente nenhum curso de psicologia. A própria dinâmica dos cursos mudou radicalmente desde que me formei.
Estudei em um curso de período integral e os professores tinham uma carga horária de dedicação para cumprir e estes dois fatores eram grandes facilitadores do convívio do qual tanto me beneficiei. Hoje quase todas as universidades contratam os professores pelas horas das disciplinas que eles ministram e os próprios alunos acabam entrando e saindo da universidade com os horários apertados. É outra realidade.
Antes de finalizar este texto, ficam duas perguntas para responder. Qual a qualificação necessária para ser mentor? E como encontrar uma mentoria adequada?
Em primeiro lugar, o mentor precisa ser alguém qualificado e com experiência consolidada em sua área de atuação. Como psicólogo, não estou qualificado a ser mentor de um engenheiro de produção e vice-versa, pois é com meu conhecimento e experiência que ajudarei o mentorando a encontrar seus próprios caminhos. Esta é uma diferença fundamental entre o processo de coaching e a mentoria.
No coaching existe uma diretividade maior e um número maior de estratégias que permitem o direcionamento da carreira do coachee, mesmo ele sendo de uma área de atuação diferente da de seu coach. Na mentoria, até existem ferramentas, mas como o foco é o desenvolvimento profissional, todas elas são mais reflexivas e exigem um processo de autoanálise por parte do mentorando. Na mentoria espera-se também uma independência maior do mentorando, neste caso, o mentor tem o papel de ajudar o jovem profissional a encontrar e construir caminhos que façam sentido em sua própria trajetória, de acordo com seus valores pessoais e aspirações para o futuro.
Um bom mentor também precisa ser, não apenas um professor, mas um bom educador. Qual a diferença? Um professor pode transmitir de uma forma mecânica seus conhecimentos sem ter um olhar para o processo de desenvolvimento do aluno. Já um educador, coloca o conteúdo em perspectiva com relação ao valor que o educando dá ao aprendizado, que usos espera fazer deste conhecimento e como o conhecimento construído transforma sua visão de mundo. Nas palavras do querido Paulo Freire “Educar-se é impregnar de sentido cada momento da vida, cada ato cotidiano”.
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