Falência do Ensino Médio em preparar para a vida adulta: reflexões de um educador

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Posso afirmar, sem medo de errar, que a educação ocupa um lugar central em todas as minhas práticas ao longo de meus 20 anos de carreira. A orientação profissional sempre foi vista por mim pelos vieses da identidade profissional e do projeto de vida. Escolher uma profissão é uma tarefa incompleta se não possibilitar ao orientando uma compreensão mais abrangente de sua inserção no mundo e de um consequente projeto de vida. 

Ao longo dos meus 20 anos de experiência, transito por pelo menos duas posições diferentes que me permitem observar, de perto, o papel exercido pelo Ensino Médio na preparação para a inserção na vida adulta. Uma delas é como orientador vocacional e a outra é como professor de Psicologia. Na primeira situação, acompanho os adolescentes no final do Ensino Médio. Já na segunda, estou junto de jovens com o Ensino Médio recém concluído. Nas duas condições, é possível perceber que o ensino é visto por grande parte dos adolescentes apenas como uma etapa a ser cumprida antes de entrar no ensino superior ou de ingressar na no mercado de trabalho.

O relato de que a escola não serve para nada é mais comum que o esperado e, embora esta percepção seja preocupante, entendo que reflete a dificuldade das escolas em apresentar o conhecimento de forma que este dialogue concretamente com a realidade vivida pelos estudantes. O mais interessante é que esta é uma premissa presente no pensamento dos principais teóricos da pedagogia e da psicologia da aprendizagem. 

Outra coisa que me deixa intrigado é o seguinte: por anos a fio, frequentei as bibliotecas da Unicamp, USP e PUC-SP e PUC-Campinas. Sempre separo um tempo para me atualizar a respeito das teses defendidas nas universidades e tenho plena convicção de que, se dependesse da produção acadêmica desses lugares, sem contar de todas as outras universidades que temos pelo país todo, deveríamos ter um dos melhores sistemas educacionais do mundo. Mas por que todo este conhecimento não chega até as salas de aula? É a partir dessa provocação que começo este artigo e compartilho alguns pontos com vocês.

1. Educação de baixa qualidade como política pública

Para começar, trago a questão do tratamento precarizado que tem sido dado à educação por parte do poder público – já há alguns anos – como uma ação articulada e planejada. Trata-se de um projeto, e não de uma crise – como bem disse o antropólogo, historiador, sociólogo, escritor e político brasileiro, Darcy Ribeiro -, cujo objetivo central é impedir e dificultar o acesso ao conhecimento e aos recursos intelectuais para que as pessoas possam, vejam só, pensar.

O pensamento crítico, embasado em argumentos que questionam o status quo, trata-se de um pensamento visto como ameaçador pelas estruturas de poder e governos autoritários e liberais. Assim, medidas de cortes de investimentos na educação, como os que estamos vendo, são medidas estratégicas que afetam o conhecimento e impedem a formação de uma sociedade pensante, atuante, questionadora e reivindicadora. 

A educação brasileira, infelizmente, amarga o último lugar em ranking de competitividade, segundo estudo feito pelo IMD World Competitiveness Center, no ano passado, que comparou a prosperidade e a competitividade de 64 nações.

Na avaliação, o Brasil caiu uma posição em relação a 2019, após quatro anos seguidos de avanços. No eixo que olha para a educação, o País teve a pior avaliação entre as nações analisadas, alcançando a 64ª posição. 

De acordo com a pesquisa, entre outros fatores, o resultado do Brasil se explica pelo mau desempenho do país no que diz respeito aos gastos públicos totais em educação: em termos per capita, o mundo investe em média US$ 6.873 (cerca de R$ 34,5 mil) por estudante anualmente, enquanto que, por aqui, se aplica apenas US$ 2.110 (R$ 10,6 aproximadamente). 

E não para por aí: o país teve ainda um baixo desempenho no Pisa, a principal avaliação internacional de desempenho escolar, ocupando a 54ª posição, e no TOEFL, ocupando o 43º lugar no ranking. Além disso, o analfabetismo atinge 6,8% da população acima de 15 anos, sendo a média mundial de apenas 2,6%.

Em se tratando de ensino superior, especificamente, bolsas de pesquisa foram suspensas e vimos um corte no orçamento das universidades federais de 3,4 bilhões. Já o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal fonte de apoio à infraestrutura física e laboratorial, teve seu orçamento inicial reduzido de cerca de R$ 3,5 bilhões para R$ 1,3 bilhão.

Eu poderia seguir ainda citando outras situações de descaso com a educação, mas fica evidente, que estamos diante de um projeto político, costurado de forma consciente, que visa sucatear as possibilidades de conhecimento e, assim, impedir que os saberes desenvolvidos pelos educadores, pesquisadores, professores, enfim, pela academia, possam ser implementados em forma de políticas de educação, de priorização de verbas, de melhoria de qualidade de vida para todos. Pergunto a vocês: aos detentores de poder e privilégios, isso importa? 

2. Os excessos das escolas particulares

Bem, agora vamos passar para um segundo ponto que, no meu entendimento, distancia e impede que o conhecimento, tão bem produzido, chegue às salas de aula. Neste caso, a questão mora, justamente, nas salas de aula, em especial das escolas particulares. Na ânsia de promover e propagandear a aprovação de seus alunos nos vestibulares, as instituições de ensino particulares colocam o conteúdo como elemento central do processo educacional, colocando o desenvolvimento humano em segundo plano. Afinal, ele ocorre concomitantemente com o aprendizado ao longo de toda a vida e, a cada etapa do ensino, há um ser humano a ser ouvido, acolhido, compreendido em suas muitas dimensões. 

A pressão pelos bons resultados em provas de vestibulares das faculdades renomadas, a pressão pela boa pontuação no Enem, a pressão pela conquista que pode ser exposta. Todas essas formas de pressão colaboram para que o aluno se sinta, muitas vezes, deslocado daquela realidade, se distancie de si próprio e atue como mero reprodutor de conteúdo, sem trazê-lo para a consciência, para o questionamento e sem, por fim, abraçar esse conhecimento para transformá-lo em sua própria visão de mundo. Há, ao meu ver, uma alienação entre aluno, ser e conteúdo.

Além disso, os excessos das escolas particulares acabam afetando a saúde mental e desencadeando quadros de estresse e ansiedade nos estudantes. Segundo uma pesquisa promovida pelo C6 Bank e Datafolha, publicada em junho, 64% dos estudantes brasileiros afirmaram sentir mais ansiedade em 2021. 

A rotina de estudos já é bastante densa para os vestibulandos e, quando se soma a isso a cobrança por boas notas e colocação, a pressão fica grande demais. O efeito, comumente, costuma ser de rebote. A ansiedade reflete em perda de foco, de motivação e de autoestima. Os estudantes entram numa estafa que, inclusive, pode causar problemas ainda mais graves, como depressão e síndrome do pânico. 

Por isso, no meu ponto de vista, é preciso que haja, sobretudo, uma atenção para além do conteúdo programado. É preciso que haja uma atenção à pessoa que está ali, aos seus anseios e dificuldades, para que, fortalecida e segura, ela possa aprender, apreender, pensar, refletir e manifestar.

3. A escassez das escolas públicas

Se por um lado os alunos sofrem com os excessos das escolas particulares, por outro, os estudantes de escolas públicas são atravessados pela escassez. Sabemos que o ensino público é permeado, historicamente, aqui no Brasil, pela falta de verbas, pela falta de professores, pela ausência de iniciativas capazes de fomentar e despertar o interesse dos alunos e profissionais. As escolas públicas, em sua maioria, ocupam prédios sucateados e, ao invés de serem redutos de atração e estímulo, se tornam locais hostis e insalubres, tanto para estudantes como para trabalhadores da educação. 

E, além do nítido descaso dos poderes estaduais em relação aos investimentos voltados às escolas de Ensino Médio, outros problemas enfrentados pelos educadores se devem à dificuldade em compreender o contexto fora da escola, o histórico, os modos de vida construídos pelos estudantes daquela comunidade. Neste sentido, é fundamental que esses jovens sejam também ouvidos para que, a partir da condição social na qual estão inseridos, seja possível identificar qual lugar a escola ocupa em suas vidas e qual a melhor maneira de conduzir o processo de aprendizagem. É assim que o conhecimento faz sentido. Faz sentir. 

4. Patologização da adolescência 

Neste ponto, destaco o desafio enfrentado pela escola ao lidar com a adolescência. Trata-se de um período da vida sobre o qual recaem visões simplistas – e infelizmente predominantes – que tendem a naturalizar, padronizar e patologizar os jovens, destacando crises e conflitos universais, sem considerar as condições subjetivas, singulares e concretas de cada sujeito. Ao “apagar” cada indivíduo, tornamos o acesso a ele muito mais difícil. Sem conhecer o outro é impossível reconhecê-lo e o não reconhecimento é algo que distancia, violenta, prejudica o desenvolvimento humano e permite a proliferação de diagnósticos de TDAH, TOD, dentre outros. 

Para fechar este ponto, trago mais uma questão que colabora para o descarrilamento da educação. É fato que existe um discurso de responsabilização pessoal de estudantes pelo sucesso ou fracasso nos estudos, sem que sejam observadas as condições de ensino-aprendizagem oferecidas pela instituição. A culpa é do jovem que não se esforça. A culpa é do jovem que não se dedica. Mas será mesmo? Diante de todo cenário que vimos até aqui, seria culpa deles? Nessa atmosfera, os estudantes ficam vulneráveis ao sistema e, muitas vezes, sofrem com a descrença dos professores. Como desfecho, temos, muitas vezes, a evasão escolar e a sobrevivência por meio de subempregos.

5. A culpa não é do professor

Falando em culpa, quero aqui encerrar este artigo ressaltando que: a culpa também não é do professor nem da professora. Como pertencente à categoria e atuante em salas de aulas há alguns anos, posso garantir que existe um sofrimento genuíno do professor que deseja ensinar, mas que se vê em condições precárias de trabalho, sem formação suficiente para enfrentar as demandas e com a cobrança tanto da sociedade – que o condena – como do próprio estado – que não o remunera, não o valoriza. 

No orçamento de 2022, o Governo Federal fez um corte de R$ 3,2 bilhões nas contas do ano, atingindo, principalmente, os ministérios de Trabalho e Previdência, Educação, Desenvolvimento Regional e Cidadania. 

A redução no Ministério da Educação foi a segunda maior, totalizando R$ 740 milhões, e entre as áreas impactadas, temos o programa Educação Básica de Qualidade, com redução de aproximadamente R$ 400 milhões. Um repasse de R$ 34,4 milhões para as instituições federais de ensino superior também foi travado. 

A culpa não é dos professores e professoras que sofrem com o potencial patológico da profissão em razão de fatores como: carga excessiva de trabalho, remuneração inadequada, falta de cooperação entre pares, falta de autonomia, excessos de burocracia, indisciplina dos alunos e estilo de gestão autoritário. 

Toda essa carga é sentida na pele e no corpo, literalmente, dos professores que adoecem e apresentam sintomas físicos e mentais, como: tensão muscular, dores de cabeça, dores nas costas, perda de voz, taquicardia, aumento de sudorese, tontura, fadiga, problemas de memória, irritabilidade excessiva, ansiedade, nervosismo, angústia, depressão. 

Estes dados estão no artigo “Adoecimento mental e o trabalho do professor: um estudo de caso na rede pública de ensino”, que aponta a profissão do docente como uma “atividade de risco para a saúde”. 

Por fim, entendo que a desvalorização dos professores, da educação, da pesquisa, do conhecimento, da ciência, trata-se de uma desvalorização do desenvolvimento social, econômico e humano. Trata-se de uma desvalorização da vida em si. Quando a educação falha, há falências múltiplas de ideias, saberes e existências.

Espero que as reflexões compartilhadas aqui possam ter colaborado de alguma forma e que, a partir delas, você possa elucidar outros pontos que relacionam educação e vida adulta.

Até o próximo!

Um abraço,

Márcio Souza

 

Fontes:

Isto É Dinheiro 

CNN Brasil 

Carta Capital 

Zero Hora 

Correio Braziliense 

Revista Educação 

Periódicos Eletrônicos em Psicologia 

Guia do Estudante 

Invest News

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